Por Raimundo Alves Pereira
Imaginemos um julgamento de um terrível réu, tendo como juiz o próprio Jesus Cristo, presumindo-se assim a justeza da sentença. Na defesa do estafermo, a nossa adorada mãe do céu, Maria de Nazaré. Pensemos que o assustado e por vezes comovido criminoso, um cangaceiro, ostentava um corolário de crimes cruéis. Espera-se de júri assim uma sentença perfeita, com o triunfo da verdadeira JUSTIÇA, não se vislumbrando nem sequer resquícios de VINGANÇA, visto que Jesus e Nossa Senhora representam a essência da virtude.
Uma cena dessa é apresentada de modo tocante no filme O Auto da Compadecida, dirigida pelo cineasta Guel Arraes, baseada na peça teatral de 1955, escrita pelo dramaturgo, romancista, poeta e ensaísta paraibano, radicado no Pernambuco, Ariano Suassuna.
Depois de visualizarmos essa passagem de justiça em um mundo fictício, ao nos voltarmos para a realidade nos deparamos, nas terras brasileiras, com o império da vingança.
Como concebemos em nossa mente o julgamento de um cangaceiro, vejamos o que ocorreu com os ícones do movimento iniciado no século XIX e findado em 1940, conhecido como cangaço, ocorrido no Polígono das Secas, região do semi-árido nordestino, a caatinga. Isso para não nos distanciarmos em demasia da atualidade, pois poderíamos destacar em abundância as decisões da Justiça dos tempos coloniais e imperiais, nos quais as atrocidades eram o modo singular de se manter a ordem.
Pois bem, os cangaceiros eram em sua maioria homens errantes e em bandos, sem endereço fixo, vivendo de assaltos, saques e não se ligando permanentemente a nenhum chefe político ou de família, embora alguns se estabelecessem em fazendas para proteger seus patrões e sua prole.
A quadrilha de maior destaque foi a liderada por Virgulino Ferreira, vulgo Lampião, o homem de Maria Bonita, parceira das andanças e dos lençóis. Ao bando coube a morte a tiros, numa emboscada da polícia. Justiça feita em represália aos seus desmandos, assim vangloriaram-se seus assassinos. Insatisfeitos, ensandecidos, degolaram um a um os mortos e expuseram suas cabeças em praça pública. Vingança, isso sim, a mais vil vingança.
Justiça e vingança. No dicionário escrito por Aurélio Buarque de Holanda, à justiça deu-se, dentre outros, o significado de “faculdade de julgar segundo o direito e melhor consciência”, e à vingança, especialmente, o de “punição, castigo”. Vistos sob esse prisma parecem autônomos, porém, quando de sua aplicação, ao longo da História, desde o Código de Hamurabi, constatamos que o significado que os separa é bastante tênue, e ora se entrelaçam, quando a vingança é mascarada por justiça, visto que os líderes das mais variadas sociedades anseiam por apresentarem-se como homens justos. Nesse afã, apostam em fortalecer em suas legislações o proibicionismo criminalizador. Diante desse contexto, observemos o que diz Maria Lúcia Karam, Juíza de Direito aposentada, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e do Instituto Carioca de Criminologia: “Uma enganosa publicidade apresenta o sistema penal como um instrumento voltado para a proteção dos indivíduos, para a evitação de condutas negativas e ameaçadoras, para o fornecimento de segurança. Esse discurso encobre a realidade de que a intervenção do sistema penal é mera manifestação de poder, servindo tão somente como instrumento de que se valem os mais diversos tipos de Estado para obter uma disciplina ou um controle sociais que resultem funcionais para a manutenção e reprodução da organização e do equilíbrio global das formações sociais historicamente determinadas nas quais surgem”.
A manobra estatal que busca tipificar no Código Penal as mais diversas ações tidas como maléficas ao convívio social, recebe apoio popular, frente a um crescimento contínuo da violência, mais notadamente nos bolsões de pobreza dos grandes centros urbanos. A população que defende a rigidez penal busca solução para minorar a insegurança que a todos aflige. Nesse quadro há uma verdadeira legitimação da vingança imposta pelo Estado, em especial aos menos favorecidos, que se perdem no emaranhado de normas jurídicas, diante de uma defensoria pública ainda incipiente.
As penitenciárias brasileiras consolidam o ápice do caráter vingativo do nosso sistema judiciário, onde homens e mulheres são expostos a impensáveis níveis de violência.
Neste estado de coisas resta-nos optar por vivermos no mundo encantado de Suassuna, no qual a Santa Mãe de Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo estão apostos para que a verdadeira justiça seja aplicada, ou nos quedarmos e deixar que aqui a vingança faça morada, ou arregaçarmos as mangas e tentarmos nós mesmos, futuros e atuais cidadãos do direito e as demais camadas sociais, transformar esta sociedade em uma morada mais justa.
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