segunda-feira, 10 de maio de 2010

VISÃO DE UM PROMOTOR DE JUSTIÇA SOBRE JUSTIÇA E VINGANÇA

Entrevista com o Promotor de Justiça Marcos Pereira Anjo Coutinho, realizada no dia 07 maio de 2010.

01 – O que diferencia justiça de vingança no âmbito do Direito Penal e na sociedade?
“Na evolução do Direito Penal, justiça e vingança já representaram um mesmo valor. Ou seja, durante séculos, a sanção por infração à Lei ou aos costumes nada mais era do que uma vingança, com fundamento privado (Lei de Talião), divino ou público. Apenas com o Iluminismo, em meados do século XVIII, é que se tem o embrião do Direito Penal moderno, em que a justiça tem uma ideia ou noção distinta da vingança. Justiça, dentre as diversas acepções filosóficas ou jurídicas seria um fator de prevenção ou inibição, de correção, de reparação da ordem violada ou, por exemplo, de extirpação do fator responsável pelo delito e ressocialização. Entretanto, ainda hoje, enorme número de pessoas busca uma vingança através do Direito Penal. Basta uma simples leitura nos "comentários dos leitores" de jornais na internet para detectarmos "filosofias" ou "paradigmas" anteriores mesmo ao "olho por olho, dente por dente"”.

02 – A ideia de punição em Direito Penal não implicaria em uma forma de fazer vingança? Afinal, apesar do caráter ressocializador e de prevenção social da pena, podemos perceber que as penitenciárias não recuperam os apenados, mas sim formam criminosos em potencial, o que é comprovado pelo elevado índice de reincidência.
“Depende. Se a ideia é punir a infração à Lei, com paradigmas pós Marques de Beccaria, pode-se afirmar que não. Entretanto, se a ideia de punição reside na vontade de impingir ao criminoso um sofrimento pelo prática do fato proibido, pode-se concluir como vingança. Formalmente, em nosso sistema penal, a vingança está descartada. Na prática nua e crua, todavia, pela falência da Administração Pública especialmente, a pena privativa de liberdade é uma vingança ou, no mínimo, um mal intenso. E os políticos não se preocupam porque o paradigma médio vigente na sociedade está ainda séculos atrás de Beccaria.”

03 – Antigamente o homem pautava-se pela Lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”, ou seja, o mal era pago com um mal proporcional. Vê-se que, sob esse ponto de vista, vingança coincidiria com justiça desde que ministrada proporcionalmente à medida da ofensa vingada. Hoje, como podemos perceber na nossa realidade social, a essência é a mesma, continua-se pagando o mal com outro mal, o que mudou foi a denominação para este ato. Antes se fazia vingança e hoje se faz justiça. Portanto, podemos inferir que talvez justiça seja uma palavra mais “civilizada” para designar vingança. O que o senhor pensa a este respeito?
“Na verdade, desculpando-me pelo trocadilho, mas, "que se faça um pouco de justiça ao olho por olho, dente por dente", pois a Lei de Talião, há milênios, foi um grande avanço no que podemos chamar de Direito Penal primitivo. Foi quase tão avançado como hoje em dia é o 'solidarismo constitucional' ou a "normatividade dos princípios". Ou seja, numa sociedade que era menos do que uma caricatura do que conhecemos hoje como organização social, a Lei de Talião representava um freio ou uma rédea na exacerbada vingança privada. Foi um limite. Sob esse ângulo, não seria ousado afirmar que era uma manifestação de justiça? Hoje, exemplificamos a lei de talião como vingança e injustiça. No gérmen de sua criação, entretanto, havia uma semente de justiça. Curioso e paradoxal, não? As afirmações, nesse sentido, devem ser feitas com cautela.
Há uma evolução normativa e principiológica real, atualmente. Mas pena, sanção e Direito Penal não são questões de uma área estanque ou isolada. A Lei tem que sair do papel e é nesse ponto, pela ineficiência estatal e paradigmas filosóficos vigentes na sociedade que, muitas vezes, confundem-se novamente as ideias de justiça e vingança. Mas, não se mostra correto, afirmar-se, taxativamente, que justiça seja uma palavra mais civilizada para designar vingança”.

04 – O que torna a justiça mais justa e a vingança menos justa?
“A vingança sempre é menos justa. Lado outro, a justiça criminal mais justa, na minha opinião, é a que melhor se amolda ao princípio da solidariedade (quase um "amar ao próximo como a si mesmo"), que reconhece na sociedade um elo indissolúvel entre os homens. Se um filho seu fosse condenado, o que você iria preferir? Pena restritiva de direitos, trabalho, educação ou prisão e encarceramento? Não há efetivamente uma justiça criminal nessa distinção? É por aí que evolui do direito penal mais justo, calcado na certeza de que a prisão é um mal necessário e que deve ser restringido o máximo possível, para a integração e ressocialização.”

05 – Quando pensamos em vingança, nos vem logo à mente o ato de “fazer justiça com as próprias mãos”, e quando pensamos em justiça, temos a impressão de que é algo legalizado, porque é realizado pelo Estado. Mas exercer a justiça através do Estado a torna justa? Não seria um meio de exercer a vingança de forma legalizada?
“Na minha opinião, não. Evidentemente, que a resposta é não, desde que a justiça criminal estatal seja calcada nos paradigmas pós Iluminismo.”

06 – O que há de comum entre justiça e vingança?
“Já se confundiram no início da história do direito penal. E nossa sociedade, ainda muito barbarizada, não aceita a imposição jurídica detentora de paradigmas distanciados de sua realidade fática.”
07 – Na sociedade, há a compreensão de que um homem que faz justiça não suja as mãos com o sangue do inimigo. Mas o Estado, quando aplica uma pena privativa de liberdade, em cadeias superlotadas, imundas e desprovidas de qualquer qualidade mínima de dignidade, não suja suas mãos com o sangue do inimigo?
“Sim, o Estado nesses casos suja as mãos, sem dúvida. Mas o "poder político" não se incomoda com isso, porque os paradigmas reinantes entre os cidadãos ainda consideram que bandido bom é bandido morto. Logo, não há prejuízos eleitorais. Curiosamente, se formos notar com maiores detalhes, os políticos são muitas vezes os maiores bandidos, mas, contraditoriamente, jantam nas melhores mesas. É a sociedade do TER e não do SER... E a nossa sociedade "justa"”.

08 - O que faz a vingança não ser a justa medida para a aplicação da justiça?
“A vingança, compreendida como um ato de ferir pelo mal praticado, distancia-se dos paradigmas do solidarismo e do garantismo penal.
"Olhe cada caminho com cuidado e atenção. Tente-o quantas vezes julgar necessário. Então, faça apenas a si mesmo uma pergunta: possui esse caminho um coração? Em caso afirmativo, o caminho é bom. Caso contrário, ele não tem a menor importância. Um torna a viagem alegre; enquanto você o seguir, será um com ele. O outro o fará maldizer sua vida. Um o torna forte; o outro o enfraquece". Carlos Castañeda”

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