quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A Trilogia de Orestéia e o direito penal: Aprenderemos a fazer justiça sem chama vingativa?

Em Eumênides, final da trilogia de Orestéia, fica muito claro como “o direito tem a capacidade de construir complexidades ainda maiores das que enfrenta”. A interpretação leva à possibilidade de compreensão sobre algo, por isto, interpretar é a possibilidade de se criar algo novo.

A transformação das Eríneas em Eumênides na trilogia de Orestéia é uma nova interpretação de como se pode fazer valer a justiça, criando o direito com base na racionalidade e na argumentação. A implantação do Areópago e a libertação de Orestes constituem dois acontecimentos importantes no desfecho da trilogia, porque representam alguma coisa, a nova interpretação para se julgar crimes de sangue, ou seja, punir por atos vingativos já não é mais o caminho a se seguir.

Sair do mundo das sombras (Agamêmnon/Coéforas) e entrar no mundo da luz (Eumênides) é a trajetória de reinterpretação de justiça da trilogia. É o fim da lei do talião, do olho por olho, dente por dente, da qual o crime de Orestes constitui um elo.

A punição de um criminoso deixa de ser uma vingança de um privilegio aristocrático, para ser objeto de um tribunal. Este que se fará valer por votos, uso da retórica, para que assim, criem-se argumentos racionais. De agora em diante, a cidade e seus cidadãos é que assumirão a responsabilidade da justiça. O fim da trilogia de Orestéia vista em Eumênides, representou o advento do Direito, da pólis, da então democracia ateniense.

A justiça na trilogia se constrói porque o direito se recriou, quando foi dada uma nova interpretação ao implacável determinismo do Talião, instaurando a justiça dos homens, possibilitando-as de se livrar da obscura necessidade de um destino de culpa e infortúnio, respeitando agora as leis.

Com isto, ora... Pensemos: Do que adianta agora construir leis e normas penais, se estas acabam por assumir uma “postura política”, com uma aplicação punitiva e vingativa? É claro que a norma em si não tem caráter vingativo, o problema é como a norma vem sendo politicamente aplicada para que acalme o “clamor social”.

Passados centenas de anos, o que se vê é um sistema penal fracassado, fruto, a meu ver, de atos vingativos. Tão certo que praticamente ninguém chega a parar e pensar sobre a pessoa humana que é o criminoso, este que será sentenciado, muitas vezes, com duras penas.

O grave problema do direito penal é a frustração de não alcançar a ressocialização, pois a aplicação da pena deveria possuir o caráter de mudança do cidadão-criminoso, mas não... Como ele se frustra, acaba sobrando tristemente o caráter punitivo-vingativo com aplicação mecânica da lei, enclausurando o preso com afronta total a dignidade da pessoa humana.

Se o delinqüente estiver em voga na mídia... Piorou! É a hora de vermos um cidadão como um “tijolo”, algo longe de ser considerado humano, se tinha família, se foi educado ou não, ou em que ambiente social foi criado. É um humano que vira objeto execrado na própria sociedade em que vive. A sociedade só se tranqüiliza quando o malfeitor é totalmente aniquilado, pois, o que vivenciamos é a própria vingança popular, que leva o criminoso a ficar em uma cela lotada, suja, infecta de doenças, etc. É a hora de transformar o ser humano em um lixo social.

Voemos para Brasília. Arruda, governador do DF é acusado de corrupção. Mas não é somente uma acusação qualquer. O que ocorre muitas das vezes, é que uma pessoa acaba pagando pelos crimes de todos. Temos vários “Arrudas” por aí, mas o “Arruda Governador do DF” é quem vai pagar por toda a roubalheira da nossa sociedade. É “pontecializar” os erros e querer puni-los com a maior das chamas vingativas.

A idéia de justiça como sendo pagar pelo seu erro com base em critérios racionais, com respeito à dignidade, acaba desfacelando, restaurando-se, então, a lei do talião, de atuar com vingança popular aos execrados na sociedade.

Em uma era de “Big Brother Brasil” expor a intimidade se torna um bem sucedido de entretenimento, num jogo de “espetacularização” de prisões. Viva o capitalismo! Viva a mídia! Viva o clamor social. Que absurdo! Fazer justiça no caso concreto não é dar razão ao clamor social, não é fazer de alguém “bode expiatório” para poder se sentir vingado. A sociedade deveria ansiar por mudanças, mas não... Prefere o jogo do “pegar pra Cristo”.

O que se observa é uma mácula na idéia de “justiça social” pautada pelo abandono da solidariedade, cidadania e pelo respeito à dignidade humana, em prol de uma “justiça vingativa”, meramente retributiva, que elege alguns poucos como “bodes expiatórios” para canalização de toda revolta popular com as inúmeras injustiças e desigualdades vivenciadas em sociedade.

A quem interessa tal espetacularização? A quem interessa saciar o clamor social por justiça com tais espetáculos?

Fora dos palcos desse “espetáculo justicialista” e midiático (que responde a uma sociedade descrente de valores, como igualdade e confiança nas instituições, retornando o critério de justiça cada vez mais para a lei do olho por olho, dente por dente) o que se vê, como já havia comentado, é uma aplicação política do direito penal, que, por um lado, se mostra pouco eficaz em relação aos ricos e poderosos, e, por outro, submete milhões de infratores anônimos a um sistema carcerário desumano e degradante. Isso apenas reafirma o caráter meramente punitivo da aplicação do direito penal atual, totalmente descomprometido com sua função ressocializadora.

Criminosos comuns são apenas “mais uma peça do lixo humano” que apodrece entre muros das diversas penitenciarias. Quais as perspectivas para os que lá estão? Como poderiam se reintegrar à sociedade?

Se, de um lado, a Constituição endossa a privação da liberdade em certos casos, por outro, ela não o faz em detrimento da dignidade da pessoa humana (CF, Art.1º III). O réu, ao ser condenado definitivamente, não se despe de seu caráter humano, não perde sua dignidade.

O que explicaria este comportamento social, de um lado tão preocupado com a intimidade alheia, tão sedento pela execração pública espetaculosa de alguns poucos, e, de outro, tão indiferente às mazelas de milhões que apodrecem nas penitenciarias sem direito sequer a ter respeitada a condição inerente de seres humanos?

Se em Orestéia ocorre uma trajetória de reinterpretação da justiça, o direito penal brasileiro corre o risco de transformar Eumênides em Eríneas, destruindo por completo o Areópago, retrocedendo a um mundo descivilizador. A punição de um criminoso em nossa sociedade volta a ser uma vingança pessoal, de um castigo ao qual é obrigado a submeter-se, por mais humilhante que seja.

Bem feito! Quem mandou errar em sociedade, agora será penalizado com as mais cruéis formas de punição. Ah! Mas não se esqueça, toda esta tortura é amparada pelo próprio Estado.

E assim, justiça penal seja feita... Justiça impregnada ainda de atos punitivos e vingativos e não há nada mais injusto, insensato e desequilibrado em matéria de castigo, do que a voz do povo: “Ladrão tem que morrer mesmo é na cadeia... seu lugar é lá!”; “Assassino não é gente, tem que apodrecer mesmo numa solitária”.

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