domingo, 28 de fevereiro de 2010
Justiça e vingança na Lei Mosaica: eram compatíveis?
Os israelitas estavam sujeitos à Lei Mosaica. Nela havia instruções claras sobre a punição aplicada à pessoa que não mostrasse respeito por coisas consideradas sagradas. No caso de um assassino, por exemplo, o sangue da sua vítima era vingado e a lei de ‘vida por vida’ era cumprida quando o assassino, “sem falta”, era morto pelo vingador do sangue. (Êx 21:23; Núm 35:21) A Lei só dava proteção ao homicida desintencional, e assim mesmo apenas sob restrições, e deste modo se promovia o respeito pela vida.
A culpa e a punição eram relativas, ou seja, nem todos os delitos e seus praticantes eram considerados à mesma luz. Quanto mais elevado o cargo, tanto maiores eram a responsabilidade e a punição. O erro deliberado era punido de modo mais severo do que o delito não intencional. As penalidades variavam muitas vezes segundo a habilidade de pagar.
É importante notar, porém, que nem sempre a justiça envolvia punir os que praticavam o que era errado. Muitas vezes, a justiça era apontada como um ato de amor para com o próximo. A lei requeria dos israelitas que se mostrasse consideração para com os incapacitados, os pobres, os cegos e os surdos. Por outro lado, torna proibitivo mostrar parcialidade, roubar, mentir ou caluniar.
De modo individual, a lei mosaica servia para supervisionar a conduta do israelita e para repreendê-lo continuamente pelas suas falhas. Também protegia a nação como um todo, visto que a mesma refreava ações questionáveis, trazendo certa medida de segurança, paz e controle social. Por isso, acredito que a Lei Mosaica era eficaz para a sua época. Hoje, porém, a justiça com conotação vingativa tornou-se inviável, mesmo porque ela não tem logrado êxito na prevenção e controle da prática de crimes, e muitas vezes acaba por trazer revolta e agravar ainda mais a situação. Além disso, o conceito de justiça hoje não reflete apenas a idéia de vingança. Assim, pode-se falar em fazer justiça sem, necessariamente, pagar o mal com o mal.
Todavia, podemos tomar como exemplo o fato de que, para os israelitas, fazer o bem para com o próximo era uma evidente demonstração de justiça. Ter tal conceito hoje em dia não só diminuiria grandemente a prática de crimes, mas também nos ajudaria a lidar com as diferenças e peculiaridades de cada ser humano.
sábado, 27 de fevereiro de 2010
Direito Penal e Justiça e Vingança
Qual a sua opinião sobre a relação entre justiça e vingança existente hoje no âmbito do Direito Penal brasileiro?
"Eu acho que esta relação se dá em vários aspectos. Primeiramente, há quem defenda a pena como uma forma de vingança, uma forma de retribuir um mal praticado pelo criminoso através da imposição de outro mal, que seria a pena. Então, a primeira relação vislumbrada é, até, teórica, doutrinária. Agora, na aplicação prática, concreta do Código Penal brasileiro, nota-se claramente que esta ideia está muito presente na atualidade, porque a sociedade, normalmente, interpreta a pena nesse contexto vingativo, retributivo e, além disso, até mesmo os agentes do poder punitivo estatal, muitas vezes, tem essa visão de pena como um ato de vingança. Então, a polícia e até alguns membros do Poder Judiciário, na aplicação dos dispositivos do Código Penal, o fazem, de certa forma, dentro desse contexto de imposição de uma vingança a quem violou uma regra penal como sendo uma forma de fazer justiça."
Então, por mais que se defenda que os períodos de vingança pública e até mesmo vingança privada estejam superados, de certa forma ainda estão muito presentes no cenário atual?
"Acho sim! Que está presente. Talvez devido a uma visão distorcida que alguns setores da sociedade tem do Direito e da aplicação deste... E isto acaba de certa forma, influenciando a própria visão que a justiça tem do Direito. Acaba por dizer o Direito, muitas vezes, por esse olhar distorcido que parcelas da sociedade tem do Direito e isso influencia e muito a própria aplicação do Direito pelos seus agentes! É aquilo que conhecemos por “opinião popular”. Então, acho que sim, está muito presente na essência, na prática."
Mas, pelo menos em tese o Direito tenta abolir essa idéia de Direito Penal como uma forma de vingança?
"Sem dúvida! A Constituição Federal tenta, o Direito Penal tenta. Apesar da vingança não ser um valor muito importante do ponto de vista científico, para o Direito a vingança é valorada negativamente, é um desvalor, inclusive é até considerada como uma motivação torpe e que, como se sabe, gera torpeza no homicídio. Apesar disso, numa leitura mais crítica, a vingança vista como sinônimo de fazer justiça existe em parcelas da sociedade e até em agentes públicos. É, sem duvida, uma visão conturbada do que é o Direito, do que é fazer Justiça."
Então é bem visível que a população, muitas vezes, entende o Direito Penal como uma forma de se vingar?
"Verdade, até por uma ideia que decorre da subjetividade e não da razão. Aqui, a subjetividade fala mais alto. Há sim a ideia de que se deve punir com o mal aquele que lhe fez mal. Embora isso nem sempre seja, no dia a dia, aplicado pelo cidadão. Refletindo bem sobre isso, pelo menos eu vejo que muitas vezes aqueles que foram magoados de alguma forma não magoam de volta, não retribuem da mesma forma aquela dor. É engraçado, mas ainda sim parece que boa parte da população entende que se vingar é sinônimo de se fazer justiça e que esta é a forma correta de aplicação do Direito como um todo."
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
Direito e suas formas de justiça
A vida em sociedade só é possível se houver o Direito para criar as bases de justiça e segurança. Todavia, o Direito não atua sozinho: seus valores não são fixados pela Lei, mas são a expressão da vontade social. Desta forma, o Direito sempre deve se atualizar de acordo com a mobilidade social, visando, assim, o equilíbrio na sociedade.
O homem é um ser social. Não se pode estudá-lo fora do contexto da sociedade em que vive. Com isso, percebe-se que quando há um conflito não solucionado pelo Direito, as pessoas recorrem à agressão. Segundo Heráclito, “se ajusta apenas a que se opõe; a discórdia é a lei de todo porvir”. Assim, quando o homem não vê no meio em que vive uma forma de solucionar o seu conflito de maneira justa, recorre a medidas pré-históricas: a vingança.
Segundo Aristóteles, a justiça é a virtude máxima de um indivíduo e do Estado. Para este filósofo, existem dois tipos de justiça: a geral e a particular.
A justiça geral é a virtude inata as pessoas, que as levam a praticar o bem ao invés do mal. A justiça particular, por sua vez, subdivide-se em distributiva e a corretiva. A primeira é a repartição proporcional das honras e bens entre os indivíduos, de acordo com o merecimento de cada um. A segunda visa harmonizar as relações entre as pessoas, estabelecendo condutas a serem seguidas e penalidades.
Apesar da célebre definição de Aristóteles, Ulpiano definiu a justiça como a vontade perpétua de dar a cada um o direito devido. Mas o direito de cada um pode variar de acordo com o tempo e com o espaço, de acordo os valores de um determinado povo e determinada cultura.
Em verdade, não se tem um conceito exato de justiça: sabe-se que a mesma está diretamente vinculada, com base na democracia moderna, à discussão livre entre a sociedade. Isto implica dizer que os valores atuais são diferentes em todo o mundo: seria extremamente perigoso defender um conceito exato, absoluto de justiça, sob pena de regressar ao estado de intolerância, violência e indignidade. Desta forma, pode-se concluir que a justiça se resume àquilo que um povo, em determinado tempo e lugar, estabelece como justo.
Para viver em sociedade, o ser humano busca vários instrumentos para limitar as relações intersubjetivas: são os instrumentos de controle social, e o Direito é apenas um deles. O homem, por vezes, recorre à religião ou à moral com intuito de satisfazer seus próprios interesses.
FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 10. ed. revista, atualizada e ampliada. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 1-11.
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010
A Trilogia de Orestéia e o direito penal: Aprenderemos a fazer justiça sem chama vingativa?
A transformação das Eríneas em Eumênides na trilogia de Orestéia é uma nova interpretação de como se pode fazer valer a justiça, criando o direito com base na racionalidade e na argumentação. A implantação do Areópago e a libertação de Orestes constituem dois acontecimentos importantes no desfecho da trilogia, porque representam alguma coisa, a nova interpretação para se julgar crimes de sangue, ou seja, punir por atos vingativos já não é mais o caminho a se seguir.
Sair do mundo das sombras (Agamêmnon/Coéforas) e entrar no mundo da luz (Eumênides) é a trajetória de reinterpretação de justiça da trilogia. É o fim da lei do talião, do olho por olho, dente por dente, da qual o crime de Orestes constitui um elo.
A punição de um criminoso deixa de ser uma vingança de um privilegio aristocrático, para ser objeto de um tribunal. Este que se fará valer por votos, uso da retórica, para que assim, criem-se argumentos racionais. De agora em diante, a cidade e seus cidadãos é que assumirão a responsabilidade da justiça. O fim da trilogia de Orestéia vista em Eumênides, representou o advento do Direito, da pólis, da então democracia ateniense.
A justiça na trilogia se constrói porque o direito se recriou, quando foi dada uma nova interpretação ao implacável determinismo do Talião, instaurando a justiça dos homens, possibilitando-as de se livrar da obscura necessidade de um destino de culpa e infortúnio, respeitando agora as leis.
Com isto, ora... Pensemos: Do que adianta agora construir leis e normas penais, se estas acabam por assumir uma “postura política”, com uma aplicação punitiva e vingativa? É claro que a norma em si não tem caráter vingativo, o problema é como a norma vem sendo politicamente aplicada para que acalme o “clamor social”.
Passados centenas de anos, o que se vê é um sistema penal fracassado, fruto, a meu ver, de atos vingativos. Tão certo que praticamente ninguém chega a parar e pensar sobre a pessoa humana que é o criminoso, este que será sentenciado, muitas vezes, com duras penas.
O grave problema do direito penal é a frustração de não alcançar a ressocialização, pois a aplicação da pena deveria possuir o caráter de mudança do cidadão-criminoso, mas não... Como ele se frustra, acaba sobrando tristemente o caráter punitivo-vingativo com aplicação mecânica da lei, enclausurando o preso com afronta total a dignidade da pessoa humana.
Se o delinqüente estiver em voga na mídia... Piorou! É a hora de vermos um cidadão como um “tijolo”, algo longe de ser considerado humano, se tinha família, se foi educado ou não, ou em que ambiente social foi criado. É um humano que vira objeto execrado na própria sociedade em que vive. A sociedade só se tranqüiliza quando o malfeitor é totalmente aniquilado, pois, o que vivenciamos é a própria vingança popular, que leva o criminoso a ficar em uma cela lotada, suja, infecta de doenças, etc. É a hora de transformar o ser humano em um lixo social.
Voemos para Brasília. Arruda, governador do DF é acusado de corrupção. Mas não é somente uma acusação qualquer. O que ocorre muitas das vezes, é que uma pessoa acaba pagando pelos crimes de todos. Temos vários “Arrudas” por aí, mas o “Arruda Governador do DF” é quem vai pagar por toda a roubalheira da nossa sociedade. É “pontecializar” os erros e querer puni-los com a maior das chamas vingativas.
A idéia de justiça como sendo pagar pelo seu erro com base em critérios racionais, com respeito à dignidade, acaba desfacelando, restaurando-se, então, a lei do talião, de atuar com vingança popular aos execrados na sociedade.
Em uma era de “Big Brother Brasil” expor a intimidade se torna um bem sucedido de entretenimento, num jogo de “espetacularização” de prisões. Viva o capitalismo! Viva a mídia! Viva o clamor social. Que absurdo! Fazer justiça no caso concreto não é dar razão ao clamor social, não é fazer de alguém “bode expiatório” para poder se sentir vingado. A sociedade deveria ansiar por mudanças, mas não... Prefere o jogo do “pegar pra Cristo”.
O que se observa é uma mácula na idéia de “justiça social” pautada pelo abandono da solidariedade, cidadania e pelo respeito à dignidade humana, em prol de uma “justiça vingativa”, meramente retributiva, que elege alguns poucos como “bodes expiatórios” para canalização de toda revolta popular com as inúmeras injustiças e desigualdades vivenciadas em sociedade.
A quem interessa tal espetacularização? A quem interessa saciar o clamor social por justiça com tais espetáculos?
Fora dos palcos desse “espetáculo justicialista” e midiático (que responde a uma sociedade descrente de valores, como igualdade e confiança nas instituições, retornando o critério de justiça cada vez mais para a lei do olho por olho, dente por dente) o que se vê, como já havia comentado, é uma aplicação política do direito penal, que, por um lado, se mostra pouco eficaz em relação aos ricos e poderosos, e, por outro, submete milhões de infratores anônimos a um sistema carcerário desumano e degradante. Isso apenas reafirma o caráter meramente punitivo da aplicação do direito penal atual, totalmente descomprometido com sua função ressocializadora.
Criminosos comuns são apenas “mais uma peça do lixo humano” que apodrece entre muros das diversas penitenciarias. Quais as perspectivas para os que lá estão? Como poderiam se reintegrar à sociedade?
Se, de um lado, a Constituição endossa a privação da liberdade em certos casos, por outro, ela não o faz em detrimento da dignidade da pessoa humana (CF, Art.1º III). O réu, ao ser condenado definitivamente, não se despe de seu caráter humano, não perde sua dignidade.
O que explicaria este comportamento social, de um lado tão preocupado com a intimidade alheia, tão sedento pela execração pública espetaculosa de alguns poucos, e, de outro, tão indiferente às mazelas de milhões que apodrecem nas penitenciarias sem direito sequer a ter respeitada a condição inerente de seres humanos?
Se em Orestéia ocorre uma trajetória de reinterpretação da justiça, o direito penal brasileiro corre o risco de transformar Eumênides em Eríneas, destruindo por completo o Areópago, retrocedendo a um mundo descivilizador. A punição de um criminoso em nossa sociedade volta a ser uma vingança pessoal, de um castigo ao qual é obrigado a submeter-se, por mais humilhante que seja.
Bem feito! Quem mandou errar em sociedade, agora será penalizado com as mais cruéis formas de punição. Ah! Mas não se esqueça, toda esta tortura é amparada pelo próprio Estado.
E assim, justiça penal seja feita... Justiça impregnada ainda de atos punitivos e vingativos e não há nada mais injusto, insensato e desequilibrado em matéria de castigo, do que a voz do povo: “Ladrão tem que morrer mesmo é na cadeia... seu lugar é lá!”; “Assassino não é gente, tem que apodrecer mesmo numa solitária”.